São Francisco de Sales
Imagina
uma jovem princesa extremamente amada por seu esposo e que um jovem libertino
pretende corromper e seduzir à infidelidade, por meio de um confidente que lhe
envia para tratar com ela sobre o seu desígnio abominável. Primeiro, este
confidente transmite à princesa esta proposta do seu amo; em seguida, a
proposta lhe agrada ou desagrada; por fim, ela consente e a aceita ou a
rejeita. Deste modo, o mundo, o demônio e a carne, vendo uma alma unida ao Filho de Deus, como sua esposa, lhe
armam tentações, nas quais primeiramente o pecado lhe é proposto, depois ele
lhe agrada ou desagrada e, por fim, ela lhes dá o seu consentimento ou as
rejeita. Eis aí os degraus que conduzem à iniquidade: a tentação, o deleite, o
consentimento; e, embora estas três coisas não se distingam evidentemente em
todos os pecados, todavia aparecem sensivelmente nos pecados maiores.
Uma
tentação, embora durasse toda a nossa vida, não nos pode tornar desagradáveis à
divina Majestade, se não nos agrada e não consentimos nela, porque na tentação
nós não agimos, mas sofremos, e, como não nos deleitamos com ela, de nenhum
modo incorremos em alguma culpa. Por longo tempo sofreu S. Paulo tentações da
carne e tão longe de se tornar com isso desagradável a Deus que, pelo
contrário, muito o glorificou. A bem-aventurada Ângela de Foligno foi também
atormentada tão cruelmente que causa pena ouvir contar. Nem menores foram as
tentações de S. Francisco e S. Bento, que um se lançou nos espinhos e o outro
na neve, para combatê-las, e, entretanto, longe de fazê-lo perder a graça de
Deus, só serviram para aumentar muito.
É
preciso, pois, ter grande coragem nas tentações e nunca ser crer vencido,
enquanto elas são desagradáveis, distinguindo bem entre sentir e o consentir.
Podemos senti-las. Embora desagradem; mas não podemos consentir sem ter gosto
nelas, porque o prazer é de ordinário um grau de consentimento. Ofereçam-nos,
pois, os inimigos de nossa salvação tantos engodos e atrativos quantos
quiserem; conservem-se sempre à porta do nosso coração, prontos para entrarem;
façam-nos tantas propostas quantas quiserem; enquanto nos conservarmos na
disposição de não nos deletarmos com estas coisas, é impossível que ofendamos a
Deus; do mesmo modo que o esposo da princesa mencionada acima não poderia de
modo algum exprobrar-lhe a proposta que lhe fizeram, se ela a abomina e
detesta. Existe, contudo essa diferença entre a princesa e a alma: aquela que
pode mandar embora o intermediário, se o quer, sem lhe dar ouvidos, e a alma
muitas vezes não se pode livrar de sentir as tentações, conquanto esteja sempre
em seu poder livrar de sentir as tentações, conquanto esteja sempre em seu
poder não consentir. E esta é a razão por que uma tentação, por mais
impertinente que seja, não nos pode causar nenhuma espécie de dano, enquanto
nos desagrada.
Quanto
ao deleite que pode seguir à tentação, é muito de notar que o homem tem em si
como que duas partes, uma inferior e outra superior e que a inferior nem sempre
se conforma à superior a atua muitas vezes separadamente desta. Disto recorre
tão frequentemente que a parte se deleita numa tentação sem consentimento da
parte superior e mesmo mau grado seu. Este é justamente o combate de São Paulo
que descreve, dizendo que a carne deseja
contra o espírito e que há uma só lei dos membros e outra e outra do espírito.
Já viste, um grande braseiro de fogo coberto de cinzas? Vindo-se aí umas dez ou
doze horas depois buscar fogo, só a muito custo é que se encontra alguma brasa
restante; contudo, ainda há fogo aí e essa brasa pode servir para acender os
outros carvões apagados. Eis aí como a caridade que é a tua vida espiritual,
subsiste em ti, apesar de todas as tentações: a tentação, pois, deleitando a
parte inferior, sobrecarrega e cobre, por assim dizer, uma pobre alma com
tantas disposições que lhe reduz o amor a Deus a bem pouca coisa. É só lá no
fundo do coração que ele ainda subsiste e mesmo aí, às vezes, é só a custo que
se encontra.
Entretanto,
ele aí está dum modo todo real, porque, apesar da perturbação geral da alma e
do corpo, sempre se conserva a firme resolução de não consentir nem no pecado
nem na tentação: o deleite que apraz ao homem exterior desagrada ao homem
interior, e ainda que cerque, por assim dizer, a nossa vontade, o deleite não
entra nela e isso nos faz julgar que é involuntário e que, enquanto permanece
assim, não pode ser pecado.
São
Francisco de Sales,
FILOTEIA, parte IV, cap IV