domingo, 29 de setembro de 2013

A HUMILDADE INTERIOR

São Francisco de Sales


Desejarás Filotéia, que te introduza ainda mais na prática da humildade; este desejo merece o meu aplauso e eu o quero satisfazer; pois, no que tenho dito até agora, há mais prudência que humildade.
Encontram-se pessoas que nunca querem prestar atenção às graças particulares que Deus lhe faz, temerosas que seu coração, enchendo-se duma vã complacência, não dê toda glória a Deus. É um falso temor e verdadeiro erro. Pois, desde que a consideração dos benefícios de Deus é um meio eficacíssimo de amá-lo, assim, diz o Doutor Angélico, quanto mais o conhecemos, tanto mais o amamos.
Nada é tão próprio para nos humilhar ante a misericórdia de Deus que a multidão de suas graças e a multidão dos nossos pecados ante a sua justiça. Consideremos, com muita atenção, o que Deus fez por nós e o que fizemos contra ele. Ao passo que examinemos os nossos pecados um por um, examinemos também as graças que Deus nos concedeu, e já não há que temer que este conhecimento nos ensoberbeça se refletimos que não temos nada de bom em nós. Porventura as bestas de carga não permanecem animais grosseiros e brutos, embora caminhem carregados de trastes preciosos e perfumados dum príncipe? Que temos nós de bom, que não tenhamos recebido? E, se o temos recebido, por que nos gloriamos disso?
A viva consideração das graças de Deus nos torna humildes, porque o conhecimento dum benefício produz naturalmente o seu reconhecimento; e, se esta consideração excitar em nós alguma complacência de vaidade, temos um remédio infalível, contra este mal, na lembrança de nossas ingratidões, imperfeições e misérias. Sim, se considerarmos o que fizemos, quando Deus não estava conosco, havemos de conhecer que o que fazemos, quando ele está conosco, não provém de nossa indústria e diligência.
Muitas vezes dizemos que nada somos, que somos a mesma miséria e, como diz S. Paulo o lixo do mundo; mas muito nos melindraríamos se nos compreendessem verbalmente e nos tratassem quais dizemos ser.
Pelo contrário, outras vezes fugimos para que nos venham atrás, escondemo-nos para que nos procurem, damos mostras de querer o último lugar, para que nos levem com muita manifestação de honra ao primeiro. O verdadeiro humilde não quer parecer que o é e nunca fala de si mesmo; a humildade, pois, não só procura esconder as outras virtudes, mais ainda mais a si mesma e, se a dissimulação, a mentira, o mau exemplo fossem coisas lícitas, ela cometeria atos de soberba e ambição, para esconder-se mesmo embaixo das capas do orgulho e subtrair-se mais seguramente ao conhecimento dos outros.
Nunca abaixemos os olhos, sem humilharmos o coração; nunca procuremos o último lugar, sem que de bom grado e sinceramente o queiramos tomar. Esta regra é tão geral que não se pode abrir exceção alguma!
O homem verdadeiramente humilde gostará mais que os outros digam dele que é um miserável, que nada é e nada vale, do que de o dizer por si mesmo; ao menos, se sabem que falam assim dele, sofre com paciência e, como está persuadido que é verdade o que dizem, facilmente se conforma com esses juízos, aliás igual aos seus.

Extraído da obra Filotéia, 


quinta-feira, 19 de setembro de 2013

ACERCA DO FALAR

São Francisco de Sales



Seja sincera tua linguagem, agradável, natural e fiel. Guarda-te de dobrez, artifícios e toda sorte de dissimulações, porque,embora não seja prudente dizer sempre a verdade, entretanto, é sempre ilícito faltar a verdade. Acostuma-se a nunca mentir, nem de propósito, nem por desculpa nem doutra forma qualquer, lembrando-te que Deus é o Deus da verdade.

E, se alguma mentira te escapar descuido e a podes reparar por uma explicação ou de algum outro modo, faze-o prontamente. Uma escusa verdadeira tem muito maior graça e eficácia, para justificar, que uma mentira meditada.

Conquanto, se possa às vezes disfarçar e encobrir a verdade por algum artifício de palavras, só o devemos fazer nas coisas importantes quando a glória e o serviço de Deus o exigem manifestamente; fora disso são estes artifícios muito perigosos, tanto assim que diz a Sagrada Escritura que o Espírito Santo não habita num espírito dissimulado e duplo.  

Nunca existiu sutileza maior e mais estimável que a simplicidade. A prudência mundana com todos os seus artifícios é o sinal dos filhos do século; os filhos de Deus andam por um caminho reto e tem o coração sem dobras. Quem caminha com simplicidade diz o sábio, caminha com confiança. A mentira, a dobrez, a dissimulação serão sempre tendências naturais de um espírito vil e fraco.

Santo Agostinho tinha dito no quarto livro de suas confissões que sua alma e a de seu amigo eram unidas numa só alma, que esta vida lhe era insuportável depois do seu falecimento, porque não queria viver assim só pela metade, mas que por esta mesma razão não queria morrer, com medo que seu amigo morresse completamente.

Mais tarde estas palavras lhe pareceram demasiadas afetadas e no seu livro das retratações ele censurou, chamando-as de inépcias.

Eis aí, Filotéia, que delicadeza desta alma santa e bela, quanta a afetação nas palavra!A fidelidade, sinceridade e a naturalidade da linguagem é certamente um lindo ornato da vida cristã. Disse e o farei, protestava Davi, guardarei os meus caminhos para não pecar com minha língua. Põe Senhor, guardas a minha boca e aos meus lábios uma porta que os feche.

Aconselhava o Rei São Luís nunca contradizer a ninguém senão em caso de pecado ou de algum grave dano, para evitar as contendas. E quando for necessário contradizer aos outros e opor a própria  opinião à sua, isto deve ser feito com muita doçura e jeito, para não parecer que se lhes quer fazer violência; tanto mais que com aspereza pouco ou nada se consegue. 

A regra de falar pouco, que os antigos sábios tanto recomendavam não se toma no sentido de dizer poucas palavras, mas no não dizer muitas inúteis, não quanto à quantidade, mas, quanto à qualidade. Dois extremos me parece que devem ser evitados cuidadosamente.

O primeiro consiste em assumir, nas conversas de que se participa um ar orgulhoso e austero, dum silencio afetado, manifestando desconfiança e desprezo.

O segundo consiste em falar demais, sem deixar ao interlocutor nem tempo nem ocasião de dizer algumas palavras, o que deixa transparecer um espírito presunçoso e leviano.

São Luís não tinha por bem falar-se numa reunião em segredo ou, como então se dizia, “em conselho”, particularmente a mesa, com receio de que os outros pensassem que se estava falando mal deles.  Sim - dizia ele - se a mesa ou numa reunião se tem alguma coisa boa ou interessante para dizer, diga-se alto e para todos; tratando-se, porém, duma coisa séria e importante não se fale sobre isso com ninguém.  

   Da Obra Filotea